| Jornal online - Registo ERC nº 125301



A última Procissão
Publicado sexta-feira, 21 de agosto de 2009 | Por: Notícias do Nordeste

De Cilhades ficar-nos-á a recordação. A História de uma aldeia que resistiu ao abandono de todos os homens de cá, mas que foi incapaz de resistir à decisão de um pequeno grupo de fora.




Um calor intenso afogueia os rostos dos poucos “romeiros” que às 18 horas da tarde se juntam em redor da capelinha de S. Lourenço. Hoje é dia 19 de Agosto e em Cilhades comemora-se a festa do seu padroeiro.

São pouco mais de uma dezena os presentes. Àquela hora, e com aquele calor, não era de esperar outra coisa. “O santinho vem mais tarde de Felgar”, informa-me um dos presentes que empina um copo de cerveja fresquinha e depois limpa os beiços com a mão sapuda e calejada.

A organização da “festinha” ainda realiza os últimos preparativos. Instalam-se as derradeiras lâmpadas, esticam-se os cabos de som, monitoriza-se o gasóleo do gerador e descarrega-se de um carro com matricula francesa alguns tachos para a jantarada da noite.

Enquanto a azáfama corre vou passeando entre o espaço demarcado por pequenas casas de pedra. Hoje, dia de S. Lourenço, estão todas abertas, e a capelinha branca, que reluz como um pirilampo na pardez acastanhada do xisto, também. A casa mais bonita e conservada está completamente escancarada, de portas abertas de par em par, como que revelando um interior sem segredos a revelar. Não me contenho e espreito. De lá um sorriso rasgado a receber a minha curiosidade. “Quer entrar?”. Vacilo. Fico momentaneamente envergonhado,mas depois recupero a compostura. Não entro mas aproveito para gerar conversa. A senhora é simpática e difunde um ar de boa anfitriã.

Cilhades é isto. Memória, memória e mais memória. Agora ninguém aqui vive mas todos os que aqui têm casas, aqui vêm com intensa regularidade. “Nunca aqui vivi, e nem sequer os meus pais”, disse-me a senhora simpática. A aldeia foi abandonada nos finais do século XIX. Os homens e as mulheres que a habitavam preferiram ir para Felgar, mais próximo de Torre de Moncorvo. Mas mantiveram intacto o espírito do lugar, a julgar pela placidez com que a minha interlocutora desfiava recordações.

A aldeia, embora sem habitantes, articulava-se diariamente com o amanho da terra. Rodeiam-na olivais imensos, muito viçosos e bem tratados. E um pouco mais abaixo o rio a correr luzidio. Esta paisagem vai desaparecer e S. Lourenço também – interpus, provocativo, a determinada altura. “Vai. É uma pena!...”, retorquiu-me a senhora com a naturalidade e a calma com que naquela tarde corria o rio Sabor. “ S. Lourenço vai para ali”, e apontou-me um cabeço que se desenvolve em frente à actual aldeia, na margem esquerda. “Mas não vai ser a mesma coisa!”, sorriu quase de esguelha. Depois de uma pausa continuou “...é uma pena...veja-me estes olivais, dão azeite do mais fino. Mas que lhe havemos de fazer?!.. Vai ficar tudo debaixo de água. O santo não, que vive na igreja de Felgar! Também dizem que vão construir uma capelinha nova para ele...não sei. Ouvi dizer...”.

Agora chegam mais romeiros. Também já passa, e muito, das sete horas da tarde.
O gerador de electricidade continua a roncar. É ele que mantém as cervejas e as bebidas frescas e que logo à noite há-de alimentar o bailarico que este ano tem uma sessão de Karaoke. Neste momento é o único ruído na acalmia do vale.

O sol começa a derrear-se na serra e a entrar tombado pela objectiva da minha R1. Um pequeno autocarro, que transporta um grupo de músicos da banda filarmónica de Felgar desce um estreito carreiro asfaltado; reluzem os seus vidros na encosta, enquanto o sol se põe. “Já lá vêm”, disse-me a minha anfitriã. E eu lá fui, de máquina em riste, para capturar a última procissão.
Tudo se inicia na ponte, junto à berma do rio. Adorna-se aí o andor e em cima deste “monta-se” o santo. Os músicos afinam os metais. O rio parado. S. Lourenço olha, observa. Eu diria que a solenidade de todo o acto advém desta imagem complacente e de um olhar esbugalhadamente meigo que se escapa de um rosto bonacheirão coberto com chapéu tricórnio. Há sorrisos, há "bocas", há gargalhadas e muitos admiradores este ano a tirar fotografias. Alguns revelam uns copitos a mais.

De Felgar continuam a descer carros, a maioria com matricula estrangeira. Ao todo serão mais de uma centena de pessoas. O trompete está desafinado. Os músicos esforçam-se para
não desapontarem os presentes. Se estivessem mais concentrados talvez não houvesse tanta desafinação. Mas valem pela entrega. Na ti-shart de um dos músicos podia ler-se“cem por cento Felgar”. E todos aplaudiam esta tirada.



O andor já está pronto. A banda está preparada. A procissão arranca. Vai sem padre e segue sempre pela beirinha do rio, passa a antiga casa do barqueiro, hoje em ruínas, e dirige-se por um canavial em túnel. Depois irrompe entre as oliveiras. O andor vai rápido, os músicos com passo acelerado. A toada acertou. Param nos sítios da tradição centenária, depois arrancam novamente quase a correr entre um caminho de pó.

Já na aldeia a festa atinge o auge. A procissão contorna a capela e depois S. Lourenço é colocado com respeito no seu interior. Alguns depositam algumas esmolas. Não é muito, cinco euros, porque o tempo é de crise.

Os músicos da banda dão uma roada para mostrarem o que verdadeiramente valem. Param, tocam e a harmonia dos metais e das caixas alastra-se pelo vale. S. Lourenço lá está, agora dentro da sua “casinha” por alguns instantes e eu quase juraria que com um olhar mais murcho. Mas talvez seja por já estar escuro. O interior da capelinha já está na penumbra.

Hoje foi dia de S. Lourenço. Talvez o último dia recordado em Cilhades antes das águas da barragem começarem a subir. Daqui a meses lá virá a transladação e a construção de um outro sítio para o "santinho" ver o seu rio de sempre, mas muito mais caudaloso. Os tempos mudam, diria Bob Dylan se soubesse deste caso.

De Cilhades ficar-nos-á a recordação. A História de uma aldeia que resistiu ao abandono de todos os homens de cá, mas que foi incapaz de resistir à decisão de um pequeno grupo de fora.



“Que S. Lourenço guarde Cilhades debaixo de água”, atirou-me a minha interlocutora de há duas horas atrás quando já me preparava para regressar. “E que a nós também nos proteja para alimentar a memória desta materialidade que vai fazer parte da nossa arqueologia sentimental...”, respondi-lhe eu laconicamente, já sem convição e apenas a tentar imitar o seu ar de disposta simpatia.

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